Por Luís Fernando Silva, advogado e assessor jurídico do Sindprevs/SC

 

Dentre as diversas iniciativas legislativas já adotadas pelo Governo Temer, certamente a mais perversa para os interesses da população brasileira é a Proposta de Emenda Constitucional nº 241/2016 (aprovada em dois turnos na Câmara dos Deputados e agora em tramitação no Senado Federal como PEC nº 55/2016), eis que atinge diretamente as políticas sociais do Governo Federal, mais particularmente aquelas inseridas dentre as chamadas “despesas primárias”, como a saúde, a educação e a previdência, a segurança pública, a defesa do meio ambiente, a manutenção de estradas, etc., alcançando também as despesas com a manutenção da folha de pagamento dos servidores públicos que prestam estes serviços.

 

Em suma a proposta estabelece que nos próximos 20 anos estas despesas não poderão crescer mais que a inflação medida a cada ano, independentemente do crescimento econômico que o País venha a experimentar no período (do qual normalmente resulta um incremento na arrecadação fiscal superior ao índice de inflação); da adoção de medidas de melhoria da eficácia da cobrança da dívida ativa (que como veremos mais à frente ainda tem muito o que melhorar para recuperar o muito que é sonegado em impostos); da redução da política de desoneração fiscal (que elevaria a arrecadação tributária); da eventual introdução de impostos sobre grandes fortunas (que aumentaria substancialmente a receita pública); ou do indubitável crescimento populacional que o País experimentará nestes 20 anos (e que implicará no aumento da demanda por serviços públicos). 

 

Ao adotarem semelhante mecanismo Governo e Congresso Nacional promovem um “malabarismo jurídico” destinado a ludibriar e descumprir a obrigação constitucional de repasse de recursos públicos para áreas como a saúde (CF, art. 198, § 2º, I), e a educação (CF, art. 212, caput), conhecida como vinculação de receitas da União, haja vista que pelo novo regime fiscal estes repasses passarão a ter seus valores revistos anualmente apenas mediante a incidência de inflação do período anterior, e não segundo a incidência de um percentual sobre a receita da União, o que implica dizer que mesmo naqueles momentos em que o Orçamento Geral da União vier a experimentar crescimento superior à inflação do período, o incremento do repasse de recursos para as áreas em questão estará limitado pelo índice inflacionário.

 

O resultado desta equação será a evidente redução proporcional destas despesas em relação ao orçamento total, ferindo as “vinculações” constitucionais a que nos referimos alhures.

 

Ora, se sabemos que os estudos especializados apontam que a população brasileira crescerá nos próximos 20 anos, ao tempo em que as restrições impostas pela PEC nº 241/2016 estabelecem que as despesas com a prestação de serviços públicos continuarão as mesmas (sendo apenas reajustadas em seu valor pela inflação do ano anterior), força é reconhecer que o Estado que teremos daqui a 20 anos será substancialmente inferior ao que temos hoje, já bastante reduzido e insuficiente à garantia de serviços públicos de qualidade e na amplitude que o nosso povo necessita.

 

De outro lado, premidos pela proibição de utilizar a receita que superar a variação inflacionária verificada no ano anterior, os futuros governantes ficarão impedidos de criar novos programas ou ampliar os investimentos em determinadas áreas, a não ser que para tanto retirem recursos de outras áreas pré-existentes, o que faz prever uma profunda e autofágica disputa entre as diversas áreas do serviço público, pondo a saúde em conflito com a previdência, por exemplo, ou a educação em conflito com a assistência social, de modo que o atual conflito distributivo entre as áreas sociais e as despesas financeiras da União passará a ser o conflito restrito às áreas sociais entre si.

 

Como afirma o CNASP (2016) em sua nota sobre a PEC nº 241/2016, “Num país que sofre com uma das mais brutais desigualdades sociais do mundo, causa espanto a propositura, pelo Poder Executivo, e aprovação avassaladora, pelo Legislativo, de um projeto de gestão das finanças públicas que onera gravemente as bases mais vulneráveis da população, em detrimento de pautas históricas, como as reformas voltadas à implementação de um regime de tributação progressiva sensível aos rendimentos e ao acúmulo patrimonial dos contribuintes mais privilegiados, capaz de assegurar, assim, verdadeira justiça fiscal na arrecadação dos fundos mantenedores do orçamento público”.

 

Enquanto isto, ao outro lado da “pizza” (aquele destinado ao pagamento solene e inquestionável dos juros e amortização da dívida pública), não se aplicam os limites impostos pela chamada “PEC do fim do mundo”, de tal modo que estes pagamentos permanecerão convenientemente “preservados” e ainda mais protegidos pelo Governo Temer, permanecendo livres para crescer mesmo acima da inflação, agora sob o beneplácito e as garantias ofertadas pelo PLS (Projeto de Lei do Senado) nº 204/2016.

 

Este PLS, aliás, guarda relação direta com a redação que a PEC nº 241/2016 dá ao art. 102, § 6º, V, do ADCT, ao excluir as denominadas “empresas estatais não dependentes” do limite de crescimento de gastos por ela imposto, na media em que estas “empresas” são pessoas jurídicas de direito privado que transacionam debêntures com investidores privilegiados, oferecendo descontos que podem chegar a 60% e com juros absurdos que podem chegar a 20% ao ano, tudo mediante garantias reais dadas pelos entes federados (União, Estados e Municípios),

 

Não por acaso o autor do PLS nº 204/2016 é o Senador José Serra (PSDB/SP), que por “coincidência” ocupa o cargo de Ministro das Relações Exteriores do Governo Temer.

 

Segundo MIGUEL (2016), professor titular do Instituto de Ciência Política da Universidade de Brasília, “a PEC aponta para um regime tributário cada vez mais regressivo. Já temos, no Brasil, um sistema de taxação que penaliza o trabalho e o consumo e beneficia os ganhos de capital. Ao congelar o investimento social, mas reafirmar o caráter sacrossanto da dívida pública, a PEC projeta um país em que todos pagam impostos, com pouquíssimo retorno em serviços públicos, para que alguns poucos ganhem com o rentismo. É uma política tributária que leva à concentração da renda e da riqueza”.

 

Para o público, de maneira geral, o Governo Temer procura dar sustentação às suas propostas utilizando-se do argumento de que nos últimos anos as despesas primárias teriam crescido acima do crescimento verificado pelo Produto Interno Bruto (PIB), o que projetaria a insustentabilidade desta política no longo prazo e exigindo a adoção de medidas imediatas de contenção deste quadro.

 

Estudos realizados pelo DIEESE (2016), entretanto, apontam que até 2012 as despesas primárias mantiveram coerência e proporcionalidade com o aumento da receita pública, tornando-se superiores a esta apenas a partir do ano de 2014, “sob efeito da crise internacional e da perda de dinamismo interno, aliado ao ajuste recessivo adotado em 2015”, de modo que o propalado “fim do mundo fiscal” não passaria de uma mentira contada para encobrir os reais interesses que se escondem por detrás da debatida Emenda Constitucional.

 

Como é fácil perceber, encontramo-nos diante de um conjunto de medidas imbrincadas e inter-relacionadas, que incluem, por exemplo, a desvinculação dos benefícios previdenciários e assistenciais do valor do salário-mínimo (reduzindo as despesas públicas decorrentes da anterior vinculação); a instituição de idade mínima para a aposentadoria e a redução do valor das pensões (que reduziria as despesas previdenciárias de maneira geral); a privatização dos serviços públicos de saúde (que excluiria total ou parcialmente as atuais despesas públicas com estes serviços); a entrega do pré-sal aos interesses estrangeiros (que reduziria a necessidade de investimentos públicos na produção de petróleo); e assim por diante, todas medidas que buscam o mesmo resultado final, qual seja a redução do tamanho do Estado brasileiro e a garantia de régio pagamento dos juros e amortização da dívida pública brasileira.

 

Com efeito, apenas para que se tenha uma ideia mais objetiva das consequências que serão geradas pela eventual aprovação da PEC nº 241/2016 (PEC nº 55/2016, no Senado), basta verificar que se estas mesmas regras estivessem em vigor desde 2003, o valor do salário-mínimo seria hoje de R$ 509,00, e não de R$ 880,00; os investimentos em educação em 2015 teriam sido de R$ 29,6 bilhões de Reais, contra os R$ 75,6 bilhões de Reais efetivamente investidos naquele ano; e entre 2002 e 2015 o orçamento da educação acumularia uma perda de R$ 268,8 bilhões, representando uma redução de cerca de 47% em relação ao que foi efetivamente investido no setor nestes últimos 14 anos.

 

Por outro lado - e agora pensando para o futuro -, é possível afirmar que as limitações determinadas pela referida Emenda Constitucional imporão ao crescimento das despesas públicas certamente acarretarão consequências como as seguintes, dentre inúmeras outras:

 

a) para que o programa “Bolsa Família” possa incorporar as novas famílias elegíveis - que certamente decorrerão do inevitável crescimento populacional brasileiro nos próximos 20 anos -, o Governo estará constitucionalmente obrigado a reduzir o universo de famílias hoje beneficiadas pelo programa, na mesma proporção do crescimento daquelas;

 

b) para que novas aposentadorias do INSS possam ser concedidas nos próximos 20 anos, o que aumentaria em termos reais a respectiva despesa, o Governo terá que adotar medidas de redução do valor dos benefícios, como a desvinculação do “piso” previdenciário do valor do salário-mínimo;

 

c) se o preço dos medicamentos oferecidos gratuitamente pelo SUS crescer em torno de 10%, e a inflação do ano anterior for de 6%, a solução será a redução na oferta da quantidade ou variedade destes medicamentos, de modo a não ocasionar aumento real de despesas;

 

O que o Governo Temer pretende com este “novo regime fiscal”, portanto, é reduzir ao máximo as despesas com a prestação de serviços públicos, com o que visa assegurar, a um só tempo, a abertura de maior espaço possível de exploração privada de atividades hoje a cargo do Estado ou com ele compartilhadas, vis a vis a constituição de um portentoso superávit primário, capaz de assegurar o pagamento de uma dívida pública cujo crescimento será cada vez mais patrocinado pelo próprio Estado (vide PLS nº 204/2016), em evidente benefício do sistema financeiro nacional e internacional.

 

E pior, tudo com a garantia de uma Emenda Constitucional, o que tornará muito mais difícil sua futura revogação ou ao menos a modificação parcial dos seus termos.

 

Como se vê, seria um abissal equívoco se a análise em torno das propostas de reforma da previdência pública não viesse acompanhada da análise sobre as medidas legislativas e constitucionais voltadas à instituição de um “Estado-mínimo” no País, já que estas políticas estão solidamente imbrincadas, seguindo um ideário definido, de evidente cunho neoliberal.

 

Fonte: Sindprevs/SC

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