Por Carlos Walter Porto-Gonçalves*

O recente debate presidencial nos EEUU entre Donald Trump e Joe Biden (29/09/2020) nos revela o quanto a Amazônia continua sendo vista sob um olhar colonizador ou, para ser mais preciso, imperialista. Esse debate deu continuidade ao que havia se estabelecido em agosto de 2020 entre Jair Bolsonaro e J-M. Macron. O par Trump-Bolsonaro, apoiado na acumulação fordista, e o par Biden-Macron, apoiado na acumulação flexível, nos mostram como se atualiza a quincentenária colonialidade do saber e do poder, com toda sua geopolítica, inclusive sua geopolítica do conhecimento, que continua dando as cartas no debate ambiental global e sobre a Amazônia, pela importância que a região tem para o equilíbrio dinâmico da casa comum (embora com responsabilidades diferenciadas) a toda humanidade.

Reduzir o debate sobre meio ambiente e a preservação da Amazônia a um fundo de US$ 20 bilhões de dólares (anuais?), como propôs o Sr. Joe Biden, no mesmo diapasão do Sr. Macron alguns meses antes, para que nossa Amazônia não seja queimada e capture o carbono que eles continuarão lançando na atmosfera é de uma arrogância inadmissível quando se trata de relações entre países e povos soberanos. E, do outro lado, temos o Sr. D. Trump, e seu simpatizante Jair Bolsonaro no melhor estilo laboetieano da “servidão voluntária”, negando o colapso ambiental global.

Nesse sentido é de se destacar a máxima dos republicanos estadunidenses que vêm afirmando seguidamente que não negociarão o modo de vida norte-americano [2]. É de se destacar como ambos, cada um a seu modo, mantém a colonialidade do saber e do poder. De nossa parte queremos ir além do debate que nos coloca diante da disjuntiva de ver a árvore ou ver a floresta, na medida que ficar nesses termos é não ver que na floresta tem gente, os povos da floresta, o grande ausente nesse debate colonizado sobre a Amazônia e não da Amazônia.

A Geopolítica do Conhecimento

Comecemos nossa reflexão pela geopolítica do conhecimento que nos vem sendo (im)posta desde o (des)encontro entre o mundo europeu e as Américas e que o colapso ambiental que, hoje, todos no mundo vivemos é seu efeito mais dramático. De cara reconheçamos, com Fernando Pessoa, que nos dissera “que minha pátria é minha língua”, pois na linguagem habitam os modos como tornamos o mundo, nosso mundo. Dar nomes próprios é uma forma de nos apropriarmos simbolicamente do mundo, de nos territorializarmos [3], ainda que não seja suficiente. Por exemplo, na Amazônia cinco línguas coloniais se impuseram – o português, no Brasil; o francês, na Guyane; o holandês, no Suriname, o inglês na Guiana e o espanhol na Amazônia venezuelana, colombiana, equatoriana, peruana e boliviana. As mais de 180 línguas originárias faladas só na Amazônia brasileira não são devidamente consideradas a não ser como estratégia de dominação e conquista territorial por meio da dominação do “ouro vermelho”, como os conquistadores/colonizadores portugueses designavam os povos indígenas.

Com esse silenciamento dos povos originários é todo um enorme acervo de conhecimentos que não pode falar. Enfim, é de epistemicídio que se trata. Com o silenciamento não só desses povos amazônidas, mas de todos os povos não-europeus, toda uma tecnociência inspirada em Francis Bacon (1561-1626) passou a se impor com um sistema de conhecimento em universidades de todo o mundo, separando sociedade e natureza não só epistemologicamente em institutos e departamentos distintos, como também separou os homens/mulheres ontologicamente das condições de reprodução metabólicas da vida, enfim, da terra em seu sentido amplo.

Assim, a terra e tudo que nela está implicado em termos de metabolismo da vida – água, fotossíntese-flora-fauna - passou a ser “recurso natural”, assim como os homens/as mulheres, separados/as das condições metabólicas de reprodução da vida, passaram a ficar à disposição do capital como “recurso humano”. E “recurso”, sabemos, é meio para que se obtenha um fim e, desse modo, os homens/mulheres, de um lado, e as condições metabólicas de reprodução da vida, do outro lado, separados enquanto recursos estão, como tais, a serviço de um fim: sem meias palavras, a serviço do dinheiro e do poder e, cada vez mais, do poder do dinheiro. Afinal, desde 1492, a Cruz [4], a Espada e o Dinheiro comandaram a colonização do mundo.

Um destaque especial merece o filósofo Francis Bacon (1561-1626). É ele quem vai eternizar a expressão “dominação da natureza”, hoje amplamente usada que, ingenuamente, é vista como sinônimo de civilizar, progredir e desenvolver verbos, cada um à sua época, com valores apregoadas pelos missionários inicialmente da Igreja e, mais recentemente, do Banco Mundial ou do FMI. Missionários esses, diga-se de passagem, quase todos brancos, escolarizados em universidades que falam em inglês, francês, alemão ou italiano e, principalmente, por homens-varões. Afinal, o antropocentrismo que tanto ressalta a racionalidade do homem, tem sido um antropocentrismo varão, que olvida sua parte mulher, um antropocentrismo branco- europeu que olvida sua parte não-branca e um antropocentrismo que privilegia os proprietários privados e olvida sua parte não proprietária das condições metabólicas de reprodução da vida e, por isso mesmo, subalternizados/as que, nem por isso, deixaram de produzir conhecimentos e, entre os quais, ainda se pode ver lógicas de cuidado e não de dominação da natureza.

Francis Bacon fazia uma distinção entre ciência, segundo ele preocupada com a verdade, e tecnociência, preocupada com a eficácia. E o que é ser eficaz numa sociedade em que a riqueza é destituída de suas qualidades concretas e vista como equivalente geral em termos abstratos? Em outras palavras, um mundo em que a riqueza é um quantum matemático: dinheiro.
Enfim, levando a sério essa constatação de F. Bacon, ser eficaz numa sociedade que quer acumular riqueza enquanto dimensão abstrata quantitativa é colocar o conhecimento tecnocientífico a serviço de algo ilimitado. E, mais, é colocar a lógica abstrata matematizada no lugar da lógica dos entes, na sua materialidade concreta. E, mais ainda, fundando suas práticas em princípios como os de escassez que, como sabemos, é a premissa da mercantilização.

Não se mercantiliza o que abunda. Sobre isso, Robert Triffin (1911-1993), economista liberal, já octogenário, nos deu uma bela lição quando consultado para fazer parte de uma banca de tese que discutia o conceito de riqueza [5]: a economia está fundada no conceito de escassez e, nesse sentido, não tem nada a dizer sobre o que seja riqueza, que é justamente o contrário de escassez. Na natureza, a rigor, não existe escassez, seja lá do que for. Afinal, uma área úmida ou uma área com elevada temperatura está relacionada às áreas secas e frias; a chuva a barlavento está associada à seca a sotavento; as regiões polares se complementam em equilíbrio dinâmico com as regiões tropicais. Enfim, a complementariedade e a diversidade da natureza inspiraram princípios ético-políticos, como os de reciprocidade.

No século XVIII, o mundo imaginado por Bacon para que tivéssemos um conhecimento pragmático e não especulativo, tal como também formulara seu contemporâneo R. Descartes (1596-1650), com a máquina a vapor ganha materialidade. Com a chamada revolução industrial, que mais precisamente deveria ser chamada de revolução (nas relações sociais e de poder por meio da tecnologia) industrial, a ideia de dominação da natureza dá um salto. Em particular pelo o uso que faz dos combustíveis fósseis. O HP, medida da potência das máquinas a vapor, é muito mais que uma sigla quando tomamos em sério o fato de ser a medida de equivalentes de cavalo – Horse Power. Assim, o HP da máquina a vapor indica que o homem passa a dominar uma técnica que não dependeria mais diretamente dos ciclos metabólicos de reprodução da vida, como era o caso do cavalo usado como tração animal para potencializar o trabalho humano. Afinal, o cavalo dependia da forragem que era seu alimento e, portanto, da fotossíntese do Sol nosso de cada dia. Não, agora com os fósseis se usa a fotossíntese mineralizada como carvão, gás e petróleo, enfim, vidas de plantas e animais que se formaram a partir da fotossíntese de milhões de anos atrás e, assim, o Homo industrialis acreditou se liberar do Sol do dia a dia, com uma noite entre elas; das estações do ano, como se fora o dono de tempo e livre das condicionalidades do espaço geográfico de onde, diga-se de passagem, não dá para tirar o corpo fora.

E quando a energia pode ser transformada em energia elétrica e iluminar as fábricas e, assim, substituir o Sol à noite, as jornadas de trabalho puderam ser estendidas para as 24 horas do dia, aumentando a exploração dos trabalhadores. Não fora as lutas dos trabalhadores e seus sindicatos e ainda continuaríamos trabalhando 15 ou mais horas de trabalho por dia, com meio expediente aos domingos e não teríamos a semana inglesa, o direito a férias e a aposentadoria que fizeram com que a tecnologia também pudesse beneficiar, de algum modo, os que ficaram privados das condições necessárias de reprodução metabólica da vida. Diga-se, de passagem, direitos arrancados com sangue, suor e vidas em greves e outras formas rebeldes que se impuseram em defesa da vida com dignidade.

E não deixemos escapar que o fato de os homens e mulheres ficarem privados do acesso às condições metabólicas de reprodução da vida (terra, água, fotossíntese-flora-fauna) dá o sentido profundo do conceito de propriedade privada, qual seja, uma forma de propriedade que priva e, ao privar, cria escassez dos bens de reprodução da vida que, antes, os camponeses e/ou indígenas com eles produziam e que, agora, veem nas gôndolas das tendas dos armazéns e dos supermercados. Enfim, os grandes princípios filosóficos se mostram bem mundanos e com muito sofrimento.

Como o tempo habita o mundo pois é um atributo da matéria, acelerar o tempo para aumentar a produtividade, diga-se de passagem, um conceito temporal com implicações metabólicas, é levar ao limite os corpos que constituem o espaço em sua dimensão metabólica. Nesse sentido, Marx usaria uma expressão para caracterizar esse momento em que, para ele, se criavam as condições materiais para a afirmação de uma sociedade que se pode caracterizar como capitalista, com a Revolução (nas relações sociais e de poder por meio da tecnologia) Industrial, ao dizer que a partir desse momento o capital se inscrevia no “circuito metabólico da produção”.

As tradições teórico-políticas que se afirmaram a partir de Marx viram nessa passagem a mudança do capital comercial, que compra uma mercadoria e vende a mesma mercadoria por um Dinheiro maior (D-M-D’), para o capital industrial em que o capital compra meios de produção, contrata trabalhadores e obtém seu lucro (D-M {meios de Produção + Matérias primas + Força de Trabalho}M’-D’) a partir de sobretrabalho que advém do trabalhador que, durante o processo de trabalho, produz um valor maior que o seu próprio valor (capital variável). Sim, essa dimensão é fundamental para entender o mundo que vivemos, mas não é suficiente.

Por que Marx teria usado a expressão “circuito metabólico da produção” para caracterizar a indústria e com ela o capitalismo? Sendo mais específico: por que o metabólico? Sim, com a máquina a vapor, movida a fósseis, o capital impõe seu ritmo ao metabolismo da produção e, assim, toda a natureza ali implicada, a da força de trabalho e a matéria e a energia usadas, são submetidas a um tempo que se quer ilimitado haja vista que a riqueza está associada a uma medida abstrata: o dinheiro. Enfim, privilegia-se a produção e não a reprodução da vida. E, afinal, no capitalismo a reprodução se entende sempre como reprodução ampliada, onde a mais valia deve se tornar capital para gerar uma mais valia ainda maior. E uma máquina mais produtiva permite consumir produtivamente mais matérias primas numa mesma unidade de tempo e, assim, diminuir o valor das mercadorias e sobretudo que o trabalhador produza o equivalente de seu valor (salário) num tempo menor e, assim, aumenta a mais valia que produz.

Tudo isso se potencializa com o uso das moléculas de carbono do carvão, gás e petróleo que, como energia, aumenta a capacidade de trabalho e trabalho, como nos ensinam os físicos, é a capacidade de transformação da matéria. Não há dúvida: tudo que é sólido desmancha no ar! Não deixa de ser uma metáfora das leis da termodinâmica, da entropia [6].

As implicações são profundas, ainda que Marx tenha chamado a atenção para a fratura metabólica que advém do fato de a matéria e a energia que tradicionalmente retornavam ao circuito metabólico da vida como adubo, por exemplo, com a agricultura subordinada à urbano-industrialização do mundo, as toneladas de biomassa transportadas pelas geografias do mundo como mercadorias não regressam aos ambientes de onde saíram [7]. A isso chamou Marx chamou de Fratura Metabólica inspirando-se em Justus von Libieg (1803-1873), químico alemão. Imaginemos os volumes que se deslocam, hoje, pelo mundo sobretudo depois da IIª Guerra, com a generalização do american way of life, e passamos a entender porque hoje não se fala simplesmente de fratura metabólica, mas sim de Colapso Metabólico [8].

Esse mesmo período histórico pós-1945 vem sendo chamado de A Grande Aceleração, justamente pela enorme demanda de matéria e energia que, desde então, se estabelece. Nunca se demandou tanta matéria e energia nos processos sociais de produção como nesses últimos 60 anos. Nunca tivemos um período igual de 60 anos, em toda a história da humanidade, que demandasse tanta matéria e energia. Período histórico que abriria um debate sobre o próprio tempo, haja vista que se quer hoje batizar uma nova era geológica como Antropoceno, a que alguns vêm batizando de Capitaloceno e outros, ainda, como Necroceno (Leonardo Boff), um período histórico em que a história não é mais vista como saindo da natureza, ao contrário, é vista como inscrita no “circuito metabólico”, me permita a redundância, da vida. Não mais uma história fora da natureza e, com isso, é todo o paradigma que os europeus impuseram ao mundo que entra em crise.

Mas o que tudo isso tem a ver com o debate das eleições estadunidenses envolvendo a Amazônia? A Amazônia, mesmo depois de mais de 500 anos de colonização e cobiça, conseguiu se manter se reproduzindo com base no Sol nosso de cada dia, com a autopoiesis (Maturana e Varela, 2001) e sua enorme produtividade biológica primária (Enrique Leff). Foi em grande parte por essa enorme disponibilidade de biomassa sob a forma de frutos, resinas, proteínas (peixes e caças) que um dos seus intelectuais mais brilhantes, o paraense de Óbidos, José Veríssimo (1857-1916), dissera que o capitalismo sempre tivera dificuldades de se afirmar na Amazônia, pelo fato de que os homens/mulheres, enquanto povos/etnias/nacionalidades/camponeses, sempre encontraram condições de se manterem livres se relacionando com suas várzeas-rios e terras firmes onde tanta vida brota e, assim, não se assalariavam permanentemente.

Registre-se que tem gente na Amazônia a mais de 19 mil anos antes do presente (Formação Cultural Chiribiquete) e que a floresta, na extensão que hoje conhecemos, só começa a se conformar quando do recuo da última glaciação Wurn (13.000 a 18.000 A.P.). Portanto, já havia gente na Amazônia antes mesmo da floresta ocupar os mais de 800 milhões de hectares que hoje ocupa nos vários países da pan-amazônia. E, em todo esse tempo de coexistência e co-evolução, muito conhecimento foi produzido. Afinal, ninguém vive sem saber coletar, sem saber caçar, sem saber curar-se (medicinas), sem saber proteger-se das intempéries (arquiteturas), enfim, ninguém vive sem saber. O conhecimento está inscrito na vida (Maturana e Varela, 2001).

É toda essa cultura (biocultura) que está sendo ameaçada, seja pela perspectiva fordista, abraçada pelos negacionistas como Trump e Bolsonaro, seja pelos que falam numa perspectiva de acumulação flexível com suas tecnologias verdes, biotecnologias e mercados de carbono, como Biden e Macron e muitas das ONGs patrocinadas pelas corporações, que falam de uso racional da floresta, como se os usos vivenciados criativamente por vários povos e suas culturas, a mais de 13 mil anos de convivência com a floresta, não fossem racionais [9]. Há um enorme acervo de saberes/fazeres (know how, não?) já experimentados como sustentáveis durante milênios. Prova maior não há de sustentabilidade no mundo.

Muitos querem industrializar a floresta, como vem sendo tentado desde a ditadura empresarial-militar (1964-1985) processo que, mais recentemente, vem sendo acelerado com a implantação de megaprojetos mineiros, de monoculturas e pecuária com toda uma logística (estradas, portos, hidrelétricas) que proporcionam a aceleração do tempo e, com isso, a ruptura dos ciclos metabólicos de reprodução da vida, tanto no seu sentido biológico como social e cultural. A “industrialização da floresta” [10], como chamou o antropólogo Paul Little, estabelece a primazia da dinâmica das leis da entropia em lugar da neguentropia (autopoiesis) que, até aqui, vêm caracterizando a vida na Amazônia.

Por vários caminhos, seja pelo fordismo ou pela acumulação flexível, muitos querem colocar a Amazônia à venda. A Amazônia não está à venda, que nos ouçam Bidens-Macrons ou Bolsonaros-Trumps, e as ONGs corporativas! E, mais, nessa floresta tem gente! Como dissera um dos seus principais defensores: “não à defesa da floresta sem os povos da floresta” (Chico Mendes). E não nos enganemos, esses povos sempre souberam dialogar com outros saberes, mas uma dimensão que os caracterizam é a da escala [11]: uma produção sempre ligada à escala da vida humana e não-humana e com base na neguentropia, na autopoiesis, na produtividade biológica primária. A chamada economia de escala, no sentido de grandes volumes como quer a lógica da acumulação de capital, sempre tira a economia dos circuitos metabólicos da vida.

Enfim, há que se respeitar a autopoiesis tal como esses povos o fizeram durante milênios e fazem ainda hoje. A Amazônia não é, definitivamente, um vazio demográfico! Muito menos é um vazio social e cultural. Seus povos oferecem à humanidade horizontes de sentido outros que não são os da acumulação, embora pelo menos desde o período colonial venham sabendo lidar com o mercado sem colocar a vida em risco, como se viu com as chamadas drogas do sertão [12]. São eles que nos legaram esse enorme patrimônio que hoje a humanidade debate. Afinal, aqui, na Amazônia, ainda é o Sol que governa a vida, apesar dos riscos que a ameaçam seja com o fordismo, seja com a acumulação flexível e suas ONGs corporativas!

É preciso superar a colonialidade do saber e do poder e respeitar a dignidade de seus povos. Afinal, não deixemos que a floresta impeça que se vejam os seus povos com seus saberes-fazeres abertos ao diálogo com o mundo. Na floresta tem gente que reivindicam Vida, Dignidade e Território! Quem sabe com essa tríade Vida, Dignidade e Território não estejam nos oferecendo outros horizontes de sentido para a vida e nos convidando a abandonar o eeuurocêntrico Liberdade, Igualdade e Fraternidade como, até aqui, se moveram as esquerdas e as direitas.

Referência
Cordeiro, Renato Caporali. Da Riqueza das Nações à Ciência das Riquezas. Ed. Loyola, 1995.
Engels, Frederick. Anti-Duhring. Ed. Boitempo, 2015.
Leff, Enrique. Racionalidade Ambiental: a reapropriação social da natureza. Ed. Civilização Brasileira, 2005.
Little, Paul. Megaprojetos na Amazônia. Ed. RAMA, ARA e DAR, 2013
Marx, Karl. O Capital, Livro I, Vol. I. Ed. Civilização Brasileira.
Maturana, H. R. & Varela, F. J. A Árvore do Conhecimento: as bases biológicas da compreensão humana. São Paulo: Pala Athenas, 2001.
Rodrigues, Antonio Jacinto. Urbanismo ou Revolução. Ed. Afrontamento, Porto.
Santos, Roberto. História Econômica da Amazônia. Editora Valer, 2019.

Notas

1 - Professor Titular do Programa de Pós-graduação em Geografia da Universidade Federal Fluminense.
2 - Embora essa tese já tivesse sido posta em dúvida antes mesmo dos EEUU ter se tornado a maior potência hegemônica mundial quando M. Gandhi indagara: “Para desenvolver a Inglaterra foi necessário o planeta inteiro. O que será necessário para garantir o desenvolvimento da Índia? ”
3 - E de aterrorizarmos os outros, muitas vezes. A origem também no terror da palavra território bem dá conta da violência/poder que caracterizam as relações sobre um determinado espaço. A tradutora Celeste H. M. Ribeiro de Souza comenta que sua tradução do ensaio “Zur Kritik der Gewalt” de Walter Benjamin como “Crítica da violência: crítica do poder” teria se dado “uma vez que todo o ensaio é construído sobre a ambiguidade da palavra Gewalt, que pode significar ao mesmo tempo “violência” e “poder”. A intenção de Benjamim é mostrar a origem do direito (e do poder judiciário) a partir do espírito da violência. Portanto, a semântica de Gewalt, neste texto, oscila constantemente entre esses dois polos; tive que optar, caso por caso, se “violência” ou “poder” era a tradução mais adequada, colocando um asterisco quando as duas acepções são possíveis”. A tradutora esclarece, ainda, que a ambiguidade se torna ainda maior pelo uso também das expressões kraft e macht, que significam, força. In Benjamin, Walter - “Crítica da violência: crítica do poder”. Revista Espaço Acadêmico – Ano II – Nº. 21, fevereiro de 2003.
4 - “Quando os missionários chegaram à África, eles tinham a Bíblia e nós, a terra. Disseram-nos: Vamos rezar. Fechamos nossos olhos. Quando os abrimos, nós é que estávamos com a Bíblia e eles com a terra.” Do bispo anglicano Desmond Tutu, Prêmio Nobel da Paz (1984).
5 - Tese publicada em livro Cordeiro (1995).
6 -A frase de K. Marx é contemporânea das primeiras formulações da teoria da entropia. No início dos anos 1850, com Rudolf Clausius; em 1876, com Willard Gibbs e, mais tarde, em 1871 por James Clerk Maxwell.
7 - Os pioneiros do materialismo histórico, como F. Engels, não deixaram escapar de suas preocupações essa dimensão da inscrição metabólica da sociedade. F. Engels no seu livro Anti-Duhring se mostra atento aos problemas que hoje designamos como de ecologia política. Diz ele: “Só uma sociedade que engrena harmoniosamente as suas forças produtivas uma nas outras segundo linhas grandiosas de um plano único, pode permitir à indústria instalar-se em todo o país, com a dispersão mais conveniente ao seu próprio desenvolvimento e à conservação dos outros elementos da produção. A supressão da oposição cidade e campo, não é só possível, mas tornou-se uma necessidade direta da própria produção industrial, como se tornou igualmente uma necessidade da produção agrícola e, ainda por cima, da higiene pública. Só com a fusão da cidade com o campo é que se pode eliminar a intoxicação atual do ar, da água e do solo: só ela pode levar as massas que hoje definham nas cidades ao ponto em que o seu estrume sirva para produzir plantas em vez de produzir doenças” (Engels, apud Rodrigues, 1975: 61).
8  - O título do livro de Luiz Marques, Capitalismo e Colapso Ambiental é, nesse sentido, muito feliz e preciso. Ele nos oferece um levantamento criterioso dos volumes de matéria e energia do mundo pós-1945. Vale a pena conferir.
9 - Registre-se que, hoje, no Acre, onde os seringueiros com muito sangue, suor e vidas conquistaram seus territórios
como Reservas Extrativistas, a maior parte dos conflitos que se veem obrigados a travar são contra os planos de manejo dos projetos de venda de carbono patrocinados pelas grandes corporações do mercado financeiro através de grandes ONGs. Já não podem mais usar uma árvore para construir suas casas, fazer um móvel ou um instrumento de trabalho, como sempre fizeram durante séculos, os camponeses, e durante milênios, os indígenas, porque suas áreas foram subordinadas ao mercado de carbono.
10 - O Antropólogo Paul Little captou o processo e o caracterizou de modo preciso. “Os megaprojetos extrativos e de infraestrutura formam parte de outro modo de adaptação humana: a industrialização. Os megaprojetos requerem grandes quantidades de energia, dependem de milhares de pessoas para sua construção, recebem altas quantidades de capital financeiro e tecnológico e transformam a paisagem florestal e as correntes hidrológicas nos lugares onde se implantam. Em resumo, os megaprojetos transformam o modo de adaptação ao bosque, mudança que resulta ser particularmente brusca em áreas rurais onde as formas tradicionais de adaptação estão, todavia, vigentes. Historicamente, o processo de industrialização de uma região durava décadas (por exemplo, o processo de industrialização da Inglaterra) e as mudanças que provocava eram internalizados por distintas gerações de forma gradual e de distintas formas. No caso dos megaprojetos amazônicos, estamos ante processos extremadamente velozes de industrialização nos quais áreas rurais se transformam em áreas urbanizadas no lapso de poucos anos. A velocidade da industrialização está acompanhada por seu aspecto impositivo. Não se consulta aos povos locais antes da instalação do megaprojeto sobre a “industrialização” de seus territórios e a mudança em seu modo de adaptação. Por isso são processos forçados de industrialização da selva”. (Little, 2013).
11 - Devo essa ideia a um diálogo público com Juan Martinez Alier, a quem agradeço pela troca.
12 - Roberto Santos em seu livro História Econômica da Amazônia (1800-1920) lembra que, em 1830, nenhum produto comercializado em Belém ultrapassava mais de 2% do total exportado, tão grande era a diversidade comercializada.

Fonte: Iela

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